Parte I
Afeganistão
Por décadas, o conceito de protecionismo feminino no Islam atraiu muita atenção da mídia ocidental. Como um símbolo do fenômeno do “choque de civilizações” – o código de vestimenta da mulher muçulmana muitas vezes leva à histeria coletiva no Ocidente e no Oriente, com cada parte absolutamente convencida de que mantém os direitos das mulheres muçulmanas na mais alta consideração. Dentro das sagradas doutrinas do Islam – o Alcorão e os ensinamentos proféticos (Sunnah) – existem códigos de vida que servem para proteger o papel feminino na sociedade. Esses códigos variam de critérios de vestimenta a limitações de movimento. No Ocidente, esses regulamentos encontrados nas fontes divinas do Islam foram ridicularizados como formas de opressão feminina. No entanto, os estados muçulmanos não fizeram muito para amenizar esses temores; pelo contrário, esses estados têm os piores antecedentes no que diz respeito aos direitos das mulheres. Como resultado, as leis que tinham como objetivo proteger as mulheres tornaram-se instrumentos para conter seu papel na sociedade.
É fundamental primeiro colocar algumas perguntas. Por que as leis protecionistas no Islam, como o véu, que inicialmente visavam proteger as mulheres em sociedades como o Afeganistão, foram transformadas em um símbolo do patriarcado? Ao mesmo tempo, por que a proibição do hijab volta a ser discutida na França sob o pretexto de proteger a liberdade feminina? É fundamental explorar até que ponto a justificativa da proteção é usada como desculpa para conceder direitos às mulheres muçulmanas no Afeganistão e na França, e como essas reivindicações acabam prejudicando esses direitos.
Em primeiro lugar, uma compreensão das origens do véu e seu significado no Islam ajudará a desmistificar esse conflito. Seguido por um exame do véu na sociedade afegã. E, finalmente, concluirei com uma análise do debate contencioso e contínuo sobre o papel do véu na França e suas implicações para os direitos humanos das mulheres.
Embora o hijab (ou seja, o véu) seja comumente atribuído à comunidade muçulmana, o advento do véu antecede a vinda do Islam. Originalmente, a “primeira referência ao véu está em um texto legal assírio que data do século 13 aC, que restringia a prática a mulheres respeitáveis e proibia as prostitutas de usar o véu” (Hoodfar 1993:6). Historicamente, o véu significava status e “era praticado pela elite nos antigos impérios greco-romano, pré-islâmico iraniano e bizantino” (ibid). O hijab tornou-se uma faceta distinta da identidade islâmica depois que o véu foi revelado como um mandato divino prescrito por Allah para as mulheres muçulmanas. Vários versículos do Alcorão falam sobre o comando do véu, um deles (Surah Al-Nur, versículos 30-31) afirmando que as mulheres “não mostrem seus ornamentos“, mas sim “que estendam seus cendais sobre seus decotes”. O outro versículo (Surah Al-Ahzab, 59) afirma “Ó Profeta! Dize a tuas mulheres e a tuas filhas e às mulheres dos crentes que se encubram em suas roupagens. Isso é mais adequado, para que sejam reconhecidas e não sejam molestadas”. Definir o que constitui o hijab está frequentemente sujeito às normas culturais de vestimenta e há variações ao redor do mundo (Hoodfar 1993:7). Mas, por meio da interpretação do Alcorão, houve diferenças de opinião a respeito desse mandamento.
Com relação a esses versículos do Alcorão, tem havido grande disputa entre os estudiosos – tanto orientalistas, não muçulmanos, quanto muçulmanos. Um exemplo é Fatima Merssini, uma feminista muçulmana proeminente que desafia vigorosamente a noção de que o véu é explicitamente ordenado no Alcorão. De acordo com Merssini, “o véu representa uma tradição de ‘mediocridade e servidão’, em vez de um padrão sagrado a partir do qual se julga a devoção das mulheres muçulmanas a Allah” (Read & Bartkowski 2000: 401). Feministas muçulmanas anti-véu, como Merssini, também citam “o fato histórico de que o véu é uma prática cultural originada de fora dos círculos islâmicos” (ibid). Essa vertente do feminismo também questiona as interpretações das escrituras mencionadas por estudiosos muçulmanos para justificar o véu, “chamando a atenção para o fato de que o Alcorão se refere enigmaticamente a uma ‘cortina’ e nunca instrui diretamente as mulheres a usarem o véu” (ibid). Obviamente, os argumentos de ambos os lados vão além de algumas das queixas feministas selecionadas aqui, mas este debate extrapola esta discussão. No entanto, como uma questão de perspectiva histórica, é fundamental compreender que existiu um debate contencioso sobre a própria legitimidade do hijab e esse debate oferece um pano de fundo de como o véu é implementado em diferentes sociedades.
Antes da invasão do Afeganistão pelos EUA em 2001, muitos americanos ficaram cada vez mais preocupados com a situação das mulheres afegãs sob o domínio do Taliban. Um exemplo dessa intriga foi demonstrado por Laura Bush, que declarou que “por causa de nossas recentes conquistas militares em grande parte do Afeganistão, as mulheres não estão mais presas em suas casas. Elas podem ouvir música e educar suas filhas sem medo de punição… a luta contra o terrorismo é também uma luta pelos direitos e pela dignidade das mulheres” (Abu-Lughod 2002:784). Aos olhos ocidentais, a burca (a vestimenta usada por muitas mulheres afegãs) foi frequentemente retratada na mídia como um símbolo de opressão que “as mulheres no Afeganistão tiveram de suportar” (Noelle-Karimi 2002:3). No entanto, à luz dos fundamentos teológicos discutidos anteriormente, estas vestimentas servem para proteger as mulheres muçulmanas. Como é que o Ocidente passou a lamentar sobre a roupa muçulmana no Afeganistão? Uma resposta inegável a essa pergunta está no controle do poder do Taliban naquele país. Para entender porque o Taliban passou a impor a cobertura feminina como uma marca registrada de seu governo, primeiro é importante entender as origens de suas ideologias.
A interpretação severa do Taliban sobre o Islam ajuda a explicar porque a imposição de uma forma rígida de vestimenta islâmica pelo grupo limitou o papel das mulheres afegãs na sociedade, apesar das intenções protecionistas da lei islâmica. (NT: Precisamos considerar que a formação do Afeganistão é composta por diversas etnias como uzbequis, quirquizes, uigures, pashtuns, etc; muitas delas com o costume do uso de vestimentas mais ortodoxas, portanto, a imposição do Taliban não é algo que vai de encontro às diversas culturas e costumes dos povos que formam o Estado Afegão.) Antes de sua consolidação de poder no Afeganistão, Ahmed Rashid argumenta que “uma vez que o Taliban era órfão de guerra, que em sua longa batalha contra as forças ocupacionais soviéticas teve pouca ou nenhuma interação com as mulheres e sua companhia, eles se isolaram em uma irmandade masculina comparada à dos Cruzados da Idade Média” (Misra 2002:582). A maioria dos seguidores da primeira geração do Taliban cresceu em campos de refugiados no Paquistão, onde vivenciaram extrema pobreza e como refugiados “foram encorajados a abraçar a ideia de vingança em inúmeras madrassas patrocinadas pela Arábia Saudita, Paquistão e CIA” (ibid). Rashid não apenas argumenta que as ações rígidas do Taliban contra as mulheres foram “destinadas a reforçar a ordem patriarcal tribal” (ibid), mas também que a ideologia do Taliban está enraizada no Alcorão “que apresenta explicitamente uma sociedade dominada por homens, onde as mulheres desempenham apenas um papel secundário papel” (ibid). Mas é este o caso? Conforme discutido anteriormente, as doutrinas ortodoxas no Islam codificaram um conjunto de regras para as mulheres com o objetivo de proteger, em vez de impedir. Laila al-Hibri discute esse assunto em profundidade no artigo “Islam, lei e costumes: redefinindo os direitos das mulheres muçulmanas”. Al-Hibri argumenta que os mandatos equânimes do Islam, particularmente aqueles relativos aos direitos das mulheres, foram executados integralmente durante a vida do Profeta Muhammad (que a paz e as bênçãos de Allah estejam sobre ele) e das gerações posteriores. Ainda assim, al-Hibri afirma que essas reformas para as mulheres foram mascaradas pelas interpretações de muitos estudiosos religiosos do sexo masculino, já que as mulheres muçulmanas foram empurradas para segundo plano. Como evidência da igualdade de gênero no Alcorão, al-Hibri afirma que “[o Alcorão] articula um princípio geral básico sobre relações de gênero adequadas; a saber, são relações entre cônjuges criados a partir do mesmo nafs [alma], o que proporciona tranquilidade a esses cônjuges, e estas relações devem ser caracterizadas por afeto e misericórdia. Tais relações não deixam espaço para hierarquias satânicas que resultam apenas em contenda, subordinação e opressão” (al-Hibri 1997:15). Em relação a esta questão presente, pode-se concluir que o Taliban interpretou estritamente os direitos das mulheres no Islam a fim de manter o domínio patriarcal sobre as mulheres afegãs. E há evidências que documentam como o Taliban executou sua ideologia extremista em relação à cobertura feminina (quando da sua ocupação entre os anos de 1996 e 2001).
De acordo com Jurgen Kleiner no artigo “O Taliban e o Islam”, com a criação do Departamento para a Prevenção do Vício e Promoção da Virtude pelo Taliban em 1996, “esquadrões desse departamento visitavam Cabul e garantiam que as regras para conduta e vestuário [fossem] seguidas” (Kleiner 2000:27). Como prova desses mandatos rígidos, em dezembro de 1996, “225 mulheres que não cumpriam o código de vestimenta foram punidas” (ibid). Kleiner prossegue afirmando que “tudo isso [foi] feito em nome do Islam – eliminando tudo o que pudesse prejudicar o ‘caminho certo’” (ibid). Mas, não apenas a reinterpretação do Islam pelo Taliban se limitou a impor à força o código de vestimenta das mulheres, eles também adotaram medidas que excluíam as mulheres da educação e do emprego. Ironicamente, esta foi a própria religião que o Taliban afirmava salvaguardar, religião esta que dotou as mulheres de igual participação na sociedade, desde seu advento. Embora o Taliban tenha insistido que sua exigência do uso da burca “concedia às mulheres uma posição de ‘dignidade e honra’” (ibid:28), eles acabaram reduzindo as mulheres a não mais do que apenas roupas. Por exemplo, a proibição do Taliban à educação para mulheres estava muito longe da realidade que existia nas primeiras gerações muçulmanas. O Alcorão determina claramente que a educação é um dever tanto dos homens quanto das mulheres (al-Hibri 1997:23). Alguns dos indivíduos mais versados no Alcorão e na tradição profética eram mulheres e al-Hibri menciona que “também havia centenas de mulheres que estavam entre os Companheiros do Profeta” e que “a educação religiosa das mulheres no início do Islam caminhava de mãos dadas com a dos homens” (ibid:22). Mesmo além do Taliban, olhando amplamente para todo o mundo muçulmano, al-Hibri questiona o declínio na representação da bolsa de estudos das mulheres muçulmanas. Ela atribui essa ausência aos sistemas patriarcais que dominaram as terras muçulmanas e, por extensão, aos estudos muçulmanos nas gerações posteriores ao Profeta (que a paz e as bênçãos de Allah estejam sobre ele). No século XXI, o fator mais convincente que pode explicar as relações duras do Taliban com as mulheres são suas interpretações estritamente erradas das leis protecionistas para as mulheres afegãs, destinadas a preservar sua sociedade dominada pelos homens. Além do Taliban, as democracias ocidentais também são capazes de infringir o direito das mulheres de se vestir livremente, e a França é um exemplo de país que tem estado no centro desse debate na última década.
Fonte: www.muslimmatters.org
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