Os métodos lógicos e científicos inaugurados pelos Califas do Leste foram aperfeiçoados nas faculdades médicas da Espanha muçulmana. O estudo da anatomia atingiu um desenvolvimento até então desconhecido
para as tradições e experiência da profissão. A partir da contemplação de pilhas de ossos em cemitérios, o estudante avançou na performance de autópsias; para a determinação, através de exames práticos, da localização e funções dos órgãos internos; até a vivissecção de quadrúpedes e marginais. Em etiologia, patologia e terapêutica houve um grande progresso.
Figura 1: Detalhe da versão em latim do Liber Totius Medicine Necessaria de Haly Abbas (1523).
A cirurgia, cuja prática implicava censura ao invés de distinção sobre seus professores, foi, através da remoção do preconceito ligado à demonstração anatômica, aliviada do descrédito com que normalmente era vista; uma cega reverência pelo antiquado e pela autoridade não foi reconhecida pelos praticantes da escola hispânico-muçulmana. Eles incutiram a importância soberana de um conhecimento competente das funções dos órgãos do corpo humano, o que sabiam que só poderia ser obtido pela prática da dissecação. Eles recomendavam grande precaução em todas as operações, e cada nova teoria era submetida a exaustivos e severos testes. Seus trabalhos foram elucidados pela introdução, nos textos, de desenhos de instrumentos adaptados para remover as condições mórbidas descritas, e a ciência está endividada com os muçulmanos espanhois por esta inovação, hoje uma parte essencial em todos os tratados sobre cirurgia.
Talvez o médico e cirurgião mais famoso do período omíada na Espanha foi Abul-Qasim Khalaf ibn al-Zahrawi, conhecido no Ocidente como Abulcasis (318 d.H./930 d.C até 403 d.H/1013 d.C). Ele ganhou grande fama como médico, e escreveu um enorme compêndio sobre o conhecimento medicinal existente, chamado Tasrif, conhecido em latim como Liber Servitoris, com trinta volumes. Os volumes iniciais lidavam com princípios gerais, os elementos e a fisiologia dos humores, e o restante com o tratamento sistemático de doenças, da cabeça aos pés. O último volume talvez seja o mais importante, que lida com todos os aspectos da cirurgia. O Tasrif de al-Zahrawi inclui muitos instrumentos cirúrgicos, idealizados e construídos por ele, e diversos procedimentos cirúrgicos. Foi o primeiro livro de cirurgia com ilustrações dos instrumentos usados a ser publicado na história. Ele explica, com a ajuda de desenhos, o uso de tais instrumentos, e operações cirúrgicas detalhadamente. Ele então mostra o homem prático que é, adicionando:
"Agora eu organizei este livro sobre cauterização em capítulos, em ordem da cabeça ao pé, para facilitar o pesquisador a encontrar o que deseja". E este é o sistema que ele segue nos outros dois livros. Ficou tão famoso que se tornou o livro referência em cirurgia em universidades importantes da Europa cristã, e foi amplamente lido. Al-Zahrawi enfatizava que o conhecimento da anatomia e fisiologia era essencial antes de se empreender qualquer cirurgia.
"Antes de praticar cirurgia, ele (o cirurgião) deve adquirir conhecimento da anatomia e da função dos órgãos para que entenda sua forma, conexões e limites. Ele deve estar amplamente familiarizado com nervos, músculos, ossos, artérias e veias. Se alguém não compreende anatomia e fisiologia, pode cometer um erro que resulte na morte do paciente. Eu já vi alguém cortar um inchaço no pescoço pensando ser um abcesso, quando era um aneurisma, e o paciente morreu na mesma hora".
Al-Zahrawi descreve instrumentos projetados e construídos por ele e seu uso. Aqui ele conta sobre a "guilhotina de amídala", e primeiro descreve um depressor de língua feito em ouro ou prata, fina como uma faca:
"E quando a língua é deprimida com sua ajuda, o tumor vai aparecer a você. Pegue um gancho, prenda em uma amídala e puxe-a para frente até onde ela chegar, mas tenha cuidado para não puxar algo da mucosa com ela. Então corte-a com o instrumento deste modelo; é como uma tesoura, mas suas extremidades são curvadas, o bico de uma encontrando a outra, e bem afiada. Deve ser feita de ferro indiano ou aço do Damasco".
Figura 2a-b: Página de Yuhanna Ibn Masawayh's (d. 857-858) Liber de simplicibus (séculos XIII e XIV). Conservado na Idade Média como um tipo de "referência do médico", este trabalho sobre amostras e suas aplicações tem um número memorável de letras maiúsculas decorativas. (Fonte)
Ele também fornece o que pode ser a primeira descrição de uma verdadeira seringa. Ele a chama de zarraqah, projetor "atirador":
"É feita de prata ou marfim, vazia, com um tubo longo e fino, fino como uma sonda; totalmente vazia exceto pelo fim, que é sólido, com três buracos: dois de um lado e um do outro. A parte vazia contendo um pistão (al-midfa) é exatamente do tamanho a ser inclusa por ele de forma que qualquer líquido é puxado quando você o puxa para cima; e quando você o aperta para baixo ele é expelido em um jato, como é feito pelo projetor pelo qual a nafta é jogada em batalhas navais".
Depois de descrever o uso de um certo ponto para costurar feridas, ele diz:
"Com este ponto, uma vez costurei uma ferida na barriga de um homem. Ele foi ferido com uma faca; a abertura da ferida era maior que o comprimento de um palmo, e naquele momento projetava para fora uns dois palmos de comprimento do seu intestino... A ferida sarou em cerca de duas semanas, e eu o tratei até que esteve melhor; ele viveu por muitos anos depois disso, normalmente. A opinião dos médicos era de que ele não podia ser curado".
Algumas operações descritas por ele são realizadas até hoje da mesma maneira que ele idealizou há quase mil anos. Elas incluem operações nas veias varicosas, a redução das fraturas cranianas, extrações dentais, e o uso de fórceps na retirada de um feto morto, entre muitas outras.
Há mais que um toque de orgulho quando ele explica a importância do conhecimento da anatomia:
"Aquele que não tem habilidade em anatomia está fadado a cair no erro que destrói a vida. Já vi muitos alegarem este conhecimento e o ostentarem, mas não tendo qualquer conhecimento ou experiência".
Ele dá diversos exemplos macabros, incluindo este:
"Eu vi outro médico que tinha um salário regular de um dos altos oficiais de nosso país para tratamento médico. Um escravo negro do oficial sofreu uma fratura na perna, perto do calcanhar, junto com uma ferida. O médico apressou-se, em sua ignorância, e ligou a fratura à ferida, bem apertado, não permitindo que a ferida curasse. Eventualmente, a perna e pé do escravo incharam e ele quase morreu. Eu fui chamado e me apressei a afrouxar o curativo, mas a gangrena já havia tomado conta e continuou a se estender até que ele pereceu".
Figura 3a-b: Duas páginas do volume 30 do livro de medicina e cirurgia Al-Tasrif de Abul-Qasim al-Zahrawi (Abulcasis), preservado em manuscrito no Instituto de Manuscritos da Academia Nacional de Ciências de Azerbaijão em Baku. (Fonte a) (Fonte b)
Mas ele também registra ao menos um momento em que ele esteve errado e não outro médico, mas o paciente, estava certo:
"O que eu vou contar é exatamente o que aconteceu com o pé de um certo homem. Ele teve um enegrecimento do pé, queimando como fogo. Quando ele viu que a doença se espalhava pelo membro, ele se apressou em aputar a si mesmo, na junta, e ficou melhor. Depois de muito tempo, o mesmo tipo de doença apareceu no dedo da mão. Ele veio até mim e eu tentei suprimir com remédios aplicados na mão. Mas não podia ser suprimido e começou a se espalhar para o segundo dedo e eventualmente a mão toda. Ele me pediu para cortar sua mão, mas eu não queria fazer isso, e sua força estava diminuido. Quando ele ficou desesperado, ele me despachou e voltou para seu país natal, e eu ouvi que ele havia cortado a mão e melhorado".
Em conclusão, como aponta Nagamia, a cirurgia no mundo muçulmano foi elevada por Al-Zahrawi ao nível de uma alta ciência em um tempo em que, no Ocidente cristão, o Cônsul de Tours declarou, em 1163, que "cirurgia deve ser abandonada em todas as escolas de medicina, por todos os médicos decentes".
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